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Brasileiros negros relatam sofrer mais preconceito em casa do que no exterior

20/11/2020 17:15

Imigrantes na África, na Ásia e na Europa falam sobre casos de racismo dentro e fora do Brasil


Seria razoável imaginar que, em um país em que a maioria se declara preta ou parda, o racismo se manifestaria de forma mais branda do que em países de maioria branca. Mas não é esta a percepção da maior parte dos imigrantes brasileiros negros ouvidos pela Folha.

A reportagem reuniu seis relatos de brasileiros que vivem ou viveram em Portugal, Irlanda, Espanha, Japão, Malta e Gana. Com exceção deste último, todos os demais países da lista têm baixas porcentagens de população negra, sendo que a maior parte desse recorte é constituída por imigrantes ou descendentes.

Em Portugal, apesar dos episódios recentes de discriminação contra brasileiros, o empresário Edgard Marcondes, 32, conta que se sente quase como um super-herói e a cor da sua pele parece não importar nos círculos em que convive. Quando vem para o Brasil, entretanto, a realidade muda, e sua condição social não faz diferença para o segurança que o observa como um suspeito dentro de um supermercado.

Já Reginaldo dos Santos, 29, foi para o Japão em busca de trabalho e melhores condições para a família. Como soldador, sente que a pressão sobre seu rendimento é maior do que para colegas japoneses. Casos mais escancarados de racismo, porém, ele só presenciou a partir da convivência com outros brasileiros.

Para o historiador Amailton Magno Azevedo, da PUC-Sp casos de preconceito dentro o Brasil são uma face do racismo fenotípico que existe no Brasil, um preconceito baseado puramente nos traços físicos que identificam alguém como uma pessoa negra -no pensamento racista, um motivo para que esse indivíduo seja considerado inferior.

"Eu mesmo vivo dia sim, dia não, esses constrangimentos em função da aparência", conta o professor, que também é negro. "Vacinado como estou, procuro encarar com relativa maturidade os olhares que recebo em bancos, supermercados e espaços de prestígio." Éverton Tadeu, 31, vive na Irlanda há oito anos. Além das malas e do dinheiro para começar a vida por lá, levou também a certeza de que o problema do racismo definitivamente não está no negro.

"A geração atual aprendeu a não se calar diante de ninguém", afirma a historiadora Nirlene Nepomuceno, ligada ao Centro de Estudos Culturais Africanos e da Diáspora - PUC/SP. "Somos negros que reconhecemos nossas histórias e nossas identidades. Temos contratempos, é natural, mas não damos mais um passo atrás." A percepção dos avanços nas relações raciais faz parte da vida de Renata Trindade, 33, e Erica Cristina Ferreira, 40. A primeira vive hoje em Malta, na Europa, e a segunda realizou o sonho de conhecer Gana. Mas o racismo não dá trégua. Mãe-de-santo em Madri, Taíssa Muniz, 45, é uma mulher negra de pele clara, mas vive como se fossem suas as dores da filha Naiara, 12, discriminada pelos colegas de escola espanhóis.

Para a socióloga Flávia Mateus Rios, da Universidade Federal Fluminense (UFF), há que se reconhecer avanços sob a ótica das relações raciais. "Vivemos um momento em que falar de racismo se tornou relevante e, o que é melhor, falar de antirracismo tem ganhado força e visibilidade pública", diz.

A luta antirracista deve ser, inclusive, uma pauta prioritária para a democracia brasileira, afirma o professor Flávio Thales Francisco, da Universidade Federal do ABC.


"No processo de praticar a democracia, fomos incorporando, ao longo dos anos, a ideia de praticar o antirracismo. E só conseguimos fazer isso porque houve pressão. Forças racistas são antidemocráticas", afirma.

"Sou mãe-de-santo em Madri, mas minha filha é quem mais sofre com racismo" Sou mãe-de-santo em Madri, ativista do movimento negro, militante candomblecista contra a intolerância religiosa e descendente de homens negros pioneiros em suas áreas de atuação -meu avô paterno, Raimundo Duarte Muniz, foi o primeiro piloto negro da Força Aérea Brasileira, e meu pai, Astor Muniz, foi o único aluno negro entre 60 alunos a se formar como engenheiro nuclear no Instituto Militar de Engenharia.

Mesmo assim, eu me senti muito pequena diante do racismo sofrido pela minha filha aqui na Espanha. Sou uma mulher negra de pele clara, e a Naiara é mais retinta. O racismo bate muito mais pesado nela do que bate em mim.

Existem coisas que a gente vê como racismo no Brasil que, na Espanha, são considerados comportamentos normais. Quando nós vivíamos em Barcelona, as pessoas tocavam no cabelo dela sem pedir nenhum tipo de permissão e, em tentativas frustradas de elogio, falavam sobre como ele era esponjoso.

Nosso cabelo é a nossa coroa! Ninguém pode chegar e tocar. Mas o pior episódio de racismo sofrido pela Naiara foi na escola. Durante as aulas remotas, os alunos tinham grupos no WhatsApp para manter o contato à distância. A Nayara foi excluída do grupo.

Quando as regras de isolamento foram flexibilizadas e as crianças podiam sair por algumas horas para caminhar ao ar livre, nenhuma criança falava com ela. Quando isso aconteceu, a dor era muito grande. Eu queria falar alguma coisa para ela, mas como eu falaria algo que nunca vivi?

Eu busquei apoio da militância negra na Espanha e entrei em contato com os coordenadores da escola. A diretora me ligou, com medo de que eu processasse a instituição, mas insistia que o que aconteceu foi um episódio de bullying, não de racismo.

O fato é que, na Espanha ou no Brasil, as pessoas ainda têm dificuldade de chamar as coisas de Taíssa Muniz, 45, é mãe-de-santo. Natural do Rio de Janeiro, mora na Espanha desde abril de 2019 "Por causa do racismo, Brasil é minha kriptonita" Cresci ouvindo alguns membros da família dizendo que eu e meus primos deveríamos nos casar com pessoas brancas para "esbranquiçar as crias". Com 15 anos, fui parado pela polícia com amigos da igreja que eu frequentava depois de organizarmos um "amigo chocolate", em que trocávamos caixas de bom-bons uns com os outros. Na cabeça do policial, um grupo de jovens negros com caixas de chocolates só poderia ter praticado algum furto.

Nessa época, já trabalhava com meu pai, o primeiro empreendedor negro que conheci, produzindo carteiras escolares. Juntei dinheiro para comprar uma bola de basquete da Adidas, mas os vendedores não engoliram a ideia de um adolescente negro comprando o item. Chamaram a polícia.

Mas tento levar esses e outros episódios com bom humor. Com acesso a boa educação, fiz um curso técnico no ensino médio e ingressei em uma universidade pública para estudar sistemas elétricos. Casei com a Geisa aos 21 anos e, quatro anos depois, fomos para um intercâmbio na Irlanda, conquistado com muito esforço, e me encantei com o empreendedorismo.

Estava no país havia apenas duas semanas e fiz uma parceria com um americano para montar uma loja de bicicletas. Deu certo, e logo surgiu outra oportunidade: o embrião da agência de intercâmbios da qual sou proprietário.

Expandi a empresa e vim para Portugal, onde os incentivos a empreendedores, mesmo que estrangeiros, são muito maiores que no Brasil. O sucesso nos negócios me fez esquecer o racismo e me sentir como um super-herói. Só sinto algum nível de discriminação quando frequento lugares da chamada "alta sociedade". Parece que preciso me vestir e me portar duas vezes melhor para ser "tolerado".

Mas quando volto para o Brasil a realidade é diferente. Ter o passaporte cheio de carimbos dos países que visitei com minha esposa não me impede de continuar sendo seguido por seguranças em lojas, shoppings e supermercados. Se eu fosse o Super-Homem, o racismo no Brasil seria minha kriptonita.

Edgard Marcondes, 32, é empresário. Natural de São Paulo, mora em Faro, no sul de Portugal há três anos "Não esperava encontrar uma África tão moderna" Na minha primeira experiência fora do país, em 2008, pude ir direto a um lugar que considero parte da minha ancestralidade. Financiada por um projeto da ONU, conheci o Senegal e foi tudo simbólico: tive aulas à sombra de baobás, árvores centenárias que, na cultura africana, simbolizam a força e a resistência dos negros.

Foi nessa viagem que nasceu o desejo de voItar à África mais preparada e ainda mais aberta às vivências no continente dos meus antepassados.

Nos anos seguintes, conheci uma escola de inglês com um modelo de ensino afrocentrado e estabeleci como meta ir para Gana para aprender inglês com "sotaque africano".

Com muito esforço, cumpri meu objetivo e tentei viver o mais próximo possível da realidade dos ganenses. Confesso que percebi que até aquele momento minha mente ainda estava colonizada. Eu não esperava encontrar uma África tão moderna e vibrante, pensamento que era fruto de tantas representações estereotipadas. Mas o que vi e vivi foi o auge de um processo de ressignificações que eu, como mulher negra, precisei passar.

E isso começou lá na infância. Eu me lembro de quando, com 6 ou 7 anos, um colega me chamou de "neguinha do cabelo duro". A professora o repreendeu, mas não conseguiu ensiná-lo sobre por que o que ele havia feito era tão grave. Em vez disso, o menino foi "obrigado" a me dar um beijo no rosto. Como ele poderia aprender algo com isso se o que ele sentia por mim era nojo? Na época, só aceitei, calada.

Mas agora ninguém mais me segura. Estou me recuperando do tratamento de leucemia. Perdi meu cabelo, mas minha identidade d permanece intacta. Quero voltar para a África dos meus sonhos.

Erica Cristina Ferreira, 40, é professora de geografia, fez um intercâmbio em Acra e mora em Taboão da Serra

"Driblei seguranças e a Covid para ocupar lugares onde não querem que eu esteja" O desejo de aprender idiomas e conhecer outras culturas nasceu quando, aos 7 anos, eu grudava no meu tio enquanto ele estudava inglês usando fitas de videocassete.

A vida me ensinou cedo que as coisas não seriam tão fáceis. Tive acesso a uma boa educação em uma escola privada de São Paulo em que, de manhã, estudavam os alunos de famílias ricas e, à tarde, bolsistas como eu e outros colegas de origens mais pobres, inclusive minhas amigas negras, que eu chamava de "primas".

Lembro que o pai de uma dessas "primas", negro, tinha um bom emprego e um carro conversível vermelho que chamava a atenção quando aparecia na saída da escola. Também lembro das colegas brancas que diziam que aquele "devia ser o carro do patrão".

Apesar de ter vivido essa e outras experiências com o racismo, só me entendi como uma mulher negra de fato quando me matriculei na Faculdade Zumbidos Palmares. Ali aprendi mais sobre a história dos negros no Brasil -a minha própria história.

Depois de algumas experiências profissionais não muito bem-sucedidas, marcadas por vagas preenchidas por pessoas brancas com currículos menos qualificados que o meu, reforcei meus planos de ir para o exterior. Trabalhando como operadora de telemarketing, juntei dinheiro para ir para Europa, e o destino mais barato na época era Malta.

Algumas pessoas disseram que era loucura, que esse não era um lugar para mim. Mas eu tenho prazer em ocupar lugares e espaços onde as pessoas não querem que eu esteja. Foi assim que, andando em círculos, eu driblava os seguranças que me seguiam em lojas e supermercados por me acharem "suspeita" e seria assim que  eu realizaria meu sonho de viver em outro país.

O que não estava nos planos era a pandemia. Depois de duas semanas em Malta, veio o "lockdown" e o que era para ser um período de três meses na Europa se tornou, por enquanto, nove. E contrariando as expectativas, não percebo entre os europeus quem possa me considerar inferior por causa da cor da minha pele. Um país com tanta gente branca me recebeu melhor do que o lugar onde eu nasci.

Os colegas nigerianos com quem trabalhei como ajudante de garçom no verão maltês ficaram  Renata Trindade, 33, morava em São Paulo e hoje é estudante em Swieqi, no nordeste de Malta

"No Japão, ouvi comentários racistas de brasileiros" Vim pra cá porque pretendo dar uma vida melhor pra minha família. Minha sogra e meu sogro já tinham vindo e disseram que era bom, que conseguiram juntar um dinheiro. Eles são sansei, descendentes da terceira geração.

Aqui eu trabalho com solda robótica e fui operador de máquina. Quando saio no horário normal, dá oito horas, mas às vezes é 12,14 horas por dia.

Aqui se trabalha muito. Por causa do corona tinha dado uma abaixada, mas agora voltou ao normal. A empresa faz o trilho do banco do carro e outras peças. Minha filha, Rebeca, tem sete anos e se adaptou bem. Tem muito brasileiro aqui onde a gente mora.

Acho que os japoneses gostam de mim. O problema que eu tive foi com os brasileiros.

Quando cheguei no Japão, ainda na primeira empresa em que trabalhei, tinha um colega que no começo conversava comigo e com a minha esposa, mas do nada se afastou. Começava a fazer pirraça.

Um dia fui perguntar para ele o que estava acontecendo, e ele respondeu "Sai daqui, olha sua cor. Vocês são todos ladrões". Me segurei o máximo que eu pude para não perder a cabeça.

O japonês parece que nem liga para raça. Mas o brasileiro aqui já olha diferente. "Nossa, um negão assim", sabe? É meio estranho, constrangedor, fica te olhando como se estivesse vendo outra coisa.

No Brasil, eu já vi racismo com um cara que trabalhava comigo, que era angolano. Os caras xingavam, chamavam de macaco, já me afastei pra não passar nervoso.

Tenho cinco irmãos, e eles já passaram por abordagens policiais racistas em São Paulo.

Uma vez quase apanhei de um policial sem ter feito nada. Considero racismo com certeza. Se é  Reginaldo dos Santos, 29, é soldador. Natural de São Paulo, mora no Japão desde janeiro de 2019

"O problema de quem me olha torto pela cor da minha pele não é meu" Fui morar fora porque terminei um relacionamento de cinco anos. Decidi que queria mudar tudo, sair do trabalho e aprender inglês. Acabei na Irlanda, que foi o destino mais em conta na época.

Seriam seis meses, mas estendeu para um ano e fui renovando meu curso. Consegui um trabalho que me proporcionou ficar lá e tenho um parceiro há cinco anos.

Cheguei com 23 anos, naquela época de sair da faculdade, irresponsabilidade, bagunça. Aqui é uma cidade muito cara, o dinheiro some da sua mão muito rápido. Trabalhei em bar, na cozinha de restaurantes, já lavei privada -fiz o que eu tinha que fazer pra continuar onde queria estar.

Se eu tivesse que reagir a cada episódio de racismo, só faria isso. Se for algo grave, eu tomo uma atitude. Mas com uma pessoa que te olhou torto, o que você vai fazer?

Meu namorado é irlandês e branco, mas não sinto isso como problema no nosso relacionamento. As pessoas sempre nos recebem muito bem.

Uma vez eu estava no centro com meu irmão e um casal parou pra perguntar se a gente estava vendendo droga. Coloquei eles para correr.

Gosto de moda e às vezes entro em lojas sofistica das só para ver um produto. Muitas vezes as pessoas olham torto, acham que não tenho condições. Mas o problema é delas, e se eu precisar de alguma coisa elas vão ter que me atender.

Meu primeiro namorado tinha condição boa de vida, o que me proporcionou ir em vários lugares em que eu era o único negro. Tinha uma certa estranheza no começo, mas acabou. Esse é o meu lugar, vou estar aqui se eu quiser e acabou, é assim que funciona. Éverton Tadeu, 31, é gerente de marketing. Natural de Indaiatuba (SP), mora em Dublin desde 2012.


Foto: Catarina Demony


Fonte: PUC-SP/ Folha de São Paulo 

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