25/03/2020 12:49
Em determinada noite de 2019, faltou energia elétrica em uma escola pública de Campinas, no interior de São Paulo. A diretora determinou que, se a luz não voltasse em meia hora, os alunos do período podiam ser dispensados. No entanto, passado o tempo, os estudantes se recusaram a ir embora.
"Eles aguardavam a merenda, que estava quase pronta — a cozinheira esperava o retorno da energia elétrica para preparar o arroz", conta o professor Eduardo Scrich, há sete anos na rede pública de ensino. "Mais da metade dos alunos decidiu permanecer na escola, no escuro, para aguardar a merenda. Enquanto a energia não retornava, mobilizaram-se para discutir se a refeição deveria ser oferecida incompleta, sem arroz, já que carne e salada estavam prontas."
Scrich conta que eles levantaram a possibilidade de "fazer uma vaquinha para comprar pão na padaria ao lado, mas a maioria não tinha dinheiro". "Mais de uma hora depois, a energia voltou, a cozinheira finalizou a janta e serviu a alimentação", recorda-se. "Em qualquer outra situação teriam todos ido embora para casa, sem exceção. No entanto, permaneceram na escola porque, de outro modo, certamente dormiriam com fome."
O episódio ilustra a importância que a merenda escolar tem na vida de muitos estudantes brasileiros. Em meio à suspensão do calendário escolar para combater a pandemia da covid-19, muitos profissionais da educação se perguntam como fica a alimentação daqueles que dependem da comida da escola.
De acordo com o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), autarquia do Ministério da Educação (MEC) responsável por repassar os recursos para alimentação escolar, a merenda beneficia 41 milhões de estudantes, da creche até a educação de jovens e adultos — o orçamento anual é de R$ 4 bilhões.
Milhões de alunos na extrema pobreza
É difícil saber quantos desses alunos dependem da merenda como principal refeição do dia. Há indicativos, entretanto, de quantos vivem em famílias mais pobres. Dados do ano passado mostram que cerca de 14 milhões de alunos são beneficiados pelo programa Bolsa Família. De acordo com levantamento da Fundação Abrinq, o Brasil tem 9 milhões de crianças e adolescentes em situação de extrema pobreza.
Há 24 anos na rede pública de São Paulo, a professora Anedi Costa de Oliveira observa que cerca de 15% dos alunos "só comem na escola". "Acompanho meus alunos nas refeições. Há os que repetem três vezes o almoço", afirma. Ela está preocupada com a demora das autoridades em encontrar uma solução em meio à crise do novo coronavírus.
Coronavírus liga alerta pelo mundo
"Muitos falam que a covid-19 veio para todos, iguala pobre e ricos. Não, definitivamente não. Alunos de colégios chiques estão bem guardados em casa, com família, com alimentos, brinquedos e trabalhos em educação à distância sendo feitos em seus computadores", observa. "Ser pobre e ter pela frente uma pandemia deixa tudo é mais difícil. Nossas periferias estão à espera de um milagre."
Pediatra e consultor da Fundação Abrinq, Yechiel Moises Chencinski disse à DW Brasil que há uma preocupação com a manutenção da alimentação das crianças nestes tempos sem aulas. "Este é um momento de especial cuidado, pois a alimentação infantil é fundamental para o desenvolvimento adequado das crianças", enfatiza. "Toda a rotina de nutrientes e preparo deve ser mantida."
Ministério da Educação busca solução
Questionado pela reportagem, o FNDE afirma que "mesmo com a suspensão das aulas na maior parte do país, a alimentação escolar continuará a ser disponibilizada aos estudantes". Mas ainda não há um consenso sobre como será a logística disso. "Neste momento, o FNDE e o Ministério da Educação, no âmbito do Comitê Operativo de Emergência, discutem a melhor alternativa para que isso ocorra", informa a instituição, em nota.
A Abrinq está monitorando a situação. "Alguns municípios, como Recife, já se anteciparam e, como medida preventiva para conter a disseminação do novo coronavírus, iniciaram a distribuição de kits alimentares para os pais", aponta Chencinski.
"Em Brasília, os alunos da rede pública de educação, cadastrados e beneficiados no Bolsa Família, no período de suspensão das aulas continuarão tendo direito à alimentação escolar por meio de decreto. O recurso será disponibilizado por meio do Cartão Material Escolar. O MEC continua em discussão, dentro do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, sobre a distribuição de merenda escolar para alunos em situação de vulnerabilidade social que estão com aulas suspensas."
No Estado de São Paulo, conforme a assessoria de imprensa da Secretaria de Educação informou à reportagem, o que foi feito foi a "antecipação do recesso". Como a merenda deve ser garantida apenas durante os 200 dias do ano letivo, uma alternativa ainda vem sendo discutida para quando o período de suspensão das aulas ultrapassar os dias de férias.
Questionado pela reportagem, o Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed) informou, por meio de sua assessoria, que os secretários defendem que os recursos da merenda sejam repassados às famílias dos estudantes que mais precisam por meio do cartão do Bolsa Família. "Neste momento, se tornou inviável distribuir qualquer tipo de kit nas escolas, pois isso colocaria em risco pais, estudantes e servidores", aponta a assessoria.
Fonte: UOL Educação
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